TCU chama de “peças de ficção” orçamentos do Fies
Para o Tribunal de Contas da União, o governo federal teve a deliberada intenção de apresentar projetos de lei orçamentária que caracterizavam peças de ficção no que se refere ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). A auditoria apontou que as dotações do programa vinham sendo significativamente subestimadas na elaboração das propostas orçamentárias enviadas ao Congresso Nacional.
O relatório da Corte destaca que nos anos de maior expansão do Fies, 2013 e 2014, os valores constantes das propostas orçamentárias remetidas pelo Poder Executivo equivaleram a menos de um quarto do valor que seria necessário para cobertura das despesas com as mensalidades dos estudantes, chegando, em 2014, a quase um décimo do que se impunha como necessário.
O TCU constatou que, em todos os anos do período de maior expansão do Fies, as dotações orçamentárias iniciais foram inferiores às finais dos anos anteriores. Ou seja, ainda que não fosse assinado qualquer novo contrato de financiamento – o que, como se verificou, ocorreu à abastança –, as dotações previstas no projeto de lei orçamentária anual - PLOA seriam insuficientes.
Concebido como programa que objetiva ampliação e democratização do acesso e permanência no ensino superior, o Fies passou por mudanças significativas ao longo de sua existência. Além de modificações no público-alvo, nos cursos elegíveis, no período de amortização e na taxa de juros aplicáveis ao financiamento, destaca-se como significativa a alteração de seu agente operador e administrador de seus ativos e passivos, tarefa originalmente atribuída à Caixa Econômica Federal (CEF) e que, em 2010, passou à incumbência do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
O Fies se insere como um dos principais instrumentos do Governo Federal para alcance da Meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, que pretende “elevar a taxa bruta de matrícula na Educação Superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para pelo menos 40% das novas matrículas no segmento público”.
Nesse sentido, desponta a forte expansão do Fies no período de 2009 a 2014, em que o número de contratos anualmente firmados passou de 32.654 para 732.593, aumento de aproximadamente 2.150%. Na mesma direção, a dotação orçamentária autorizada (dotação inicial mais créditos adicionais) subiu, no mesmo período, de R$ 1,02 bilhão para R$ 12,13 bilhões.
Segundo informado pelo FNDE, o número de estudantes matriculados no ensino superior com recursos do Fies, que era 185.197 em 2009, passou para 1.863.176 ao final de 2015, ou seja, acréscimo de mais de 900% em seis anos.
O movimento de contenção somente veio a ocorrer em 2015, quando as restrições orçamentárias e financeiras que atingiram o Fies impulsionaram a adoção de critérios de seleção mais restritivos e a redução na oferta de vagas.
“Entretanto, a despeito da agressiva política de expansão do Fies adotada até o ano de 2015, a ação governamental não foi precedida de estudos, projeções, notas técnicas, pareceres ou outros instrumentos que demonstrassem sua viabilidade e sustentabilidade, sobretudo no que se refere aos impactos fiscais, orçamentários e financeiros advindos desse acelerado crescimento”, diz a ministra relatora do processo, Ana Arraes.
Inadimplência
De acordo com o TCU, a expansão dissociada de planejamento adequado e de critérios mais rigorosos para concessão de financiamento torna necessária a avaliação dos riscos de inadimplência e de seus impactos sobre as contas públicas.
Conforme informação prestada pelo FNDE, em 31/12/2015, cerca de 49% dos contratos em fase de amortização encontravam-se com algum nível de inadimplência. Havia 26% dos financiamentos com atraso maior que 360 dias. Esses números referem-se a contratos firmados antes do período de maior expansão do Fies (a partir de 2010), considerando que a amortização somente se inicia após o término do curso e do período de carência (até 18 meses, a depender do momento da assinatura do financiamento).
Pode-se considerar, em média, que o financiamento de um curso de quatro anos, iniciado no início de 2010, somente começará a ser amortizado em meados de 2015 e que essa amortização somente cessará no final de 2028.
Estudo publicado no Boletim de Avaliação de Políticas Públicas da STN intitulado “Financiamento Estudantil: Insights Sobre as Condições de Financiamento e o Risco Fiscal” estimou que em nível de inadimplência de 40%, com taxa de juros de 3,4% a.a. (financiamentos concedidos antes da Resolução 4432/2015), “seriam esperados impactos negativos no Resultado Primário em valores maiores que R$ 1 bilhão a partir de 2020 e em 2025 esse impacto seria de cerca de R$ 3 bilhões”.
Caso a inadimplência seja de 60%, o impacto fiscal seria de R$ 2,5 bilhões e R$ 5,1 bilhões, respectivamente, em 2020 e 2025. Não obstante essa possibilidade real, os Anexos de Riscos Fiscais das Leis de Diretrizes Orçamentárias não têm contemplado a análise dos riscos fiscais relativos ao Fies.
“O risco da inadimplência impossibilita a criação de círculo virtuoso em que o produto da amortização dos financiamentos concedidos pudesse vir a se tornar, no futuro, importante fonte de receita do Fies, com a consequente redução da dependência dos aportes orçamentários via OGU destinados aos pagamentos às instituições privadas”, disse Arraes.
No período 2010-2015, foram pagos às instituições de ensino aproximadamente R$ 37 bilhões, ao passo que as receitas com amortizações e juros ficaram próximas de R$ 1,1 bilhão. Estima-se que, apenas para que sejam mantidos os financiamentos estudantis já assinados até dezembro de 2015, serão necessários R$ 55,4 bilhões até 2020.
Garantias de financiamento
Conforme análise do TCU, além dos efeitos deletérios sobre o equilíbrio orçamentário, a vertiginosa expansão do Fies ocorreu de forma temerária quanto à apresentação de garantias para financiamento.
Originalmente, os financiamentos do Fies eram concedidos aos estudantes sob a condição de que fosse apresentado fiador. Em 2011, foi criado o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (Fgeduc), de natureza privada e patrimônio próprio, com o objetivo de garantir parte do risco em operações de crédito educativo.
No primeiro momento, o Fgeduc foi utilizado para facilitar a obtenção de financiamento por parte de estudantes com renda familiar mensal bruta per capita de até 1,5 salário mínimo e que enfrentavam dificuldades para a apresentação de fiadores. Em 2014, novas regras vigoraram para o Fgeduc, e todos os alunos passaram a contar com o Fundo Garantidor, sem necessidade de oferecimento de fiador.
Nos termos de seu Estatuto, o valor máximo a ser garantido pelo Fgeduc (“Alavancagem”) é de dez vezes o valor de seu patrimônio líquido. Em setembro de 2011, esse valor máximo foi ultrapassado em 28%, e, a partir de então, o excesso sobre o limite ocorreu em todos os meses até dezembro de 2014, chegando a disparatados 1.019% em fevereiro daquele ano
O patrimônio do Fgeduc somente possui lastro suficiente para apoiar suas operações durante os oito primeiros meses de sua existência. Em dezembro de 2014, seria necessário o aporte de R$ 1,1 bilhão para enquadramento do Fgeduc nos limites máximos de alavancagem permitidos por seu Estatuto. Até junho de 2016, não havia sido efetivado novo aporte.
Publicada em : 24/11/2016