ONGs vão à luta em defesa do dinheiro público

Reportagem do jornal Valor Econômico mostrou o crescimento de ONGs que trabalham na fiscalização dos recursos públicos. Para Gil Castello Branco, secretário-geral da Contas Abertas, ONG fundada em 2005 para fiscalizar as contas públicas e referência na área, a demanda por informações sobre os gastos governamentais nunca foi tão grande quanto nos últimos anos.

"A gente recebe diariamente de cinco a oito pedidos para algum tipo de trabalho", diz. Entre os interessados, estão principalmente jornalistas, professores universitários e outros pesquisadores. "São pessoas de todos os Estados, de cidades longínquas". Castello Branco definiu a atuação da entidade como "pioneira".

De acordo com ele, a multiplicação nos anos recentes de portais governamentais que apresentam os gastos criou uma inversão de situações. "Antes, a gente tinha poucos dados para a quantidade de pessoas atrás deles. Agora, a gente tem poucas pessoas para analisar tudo o que está disponível", diz.

Castello Branco vê de maneira "muito positiva" a criação das novas iniciativas e torce por uma profissionalização delas. "Outros países já percorreram esse caminho", afirma. "É preciso ter um mínimo de organização, de recursos e estrutura para fazer um bom trabalho."

Observatórios sociais

Um carrinho de limpeza valia R$ 418, mas quase foi comprado por R$ 20 mil. Um deputado federal pediu à Câmara reembolso por 13 almoços em um único dia. Outro solicitou também que fosse reembolsado por refeições em seis cidades e três Estados diferentes, feitas todas no mesmo dia.

Todos esses casos chegaram muito perto de causar prejuízos aos cofres públicos. Mas nos últimos anos, em meio à crise fiscal e a escândalos de corrupção, tem surgido um número cada vez maior de iniciativas para monitorar os gastos do governo. Foram justamente algumas dessas iniciativas que impediram desvios que na maior parte das vezes passariam despercebidos.

"É uma atividade bonita, mas muito trabalhosa", diz Elizabeth Castro Maurenza de Oliveira, coordenadora do curso de ciências contábeis da Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, ela está terminando os trâmites burocráticos para a criação de um Observatório Contábil Social (OCS) em São Bernardo do Campo (SP).

O OCS faz parte do Observatório Social do Brasil (OSB), organização não governamental presente em 19 Estados e mais de 100 cidades, donas de 30 milhões de habitantes e orçamento de quase R$ 70 bilhões. "Até o meio do ano a nossa meta é estar em 150 municípios", diz Roni Enara, diretora-executiva do OSB.

Cada unidade tem a função de fiscalizar as compras da prefeitura da cidade em que está instalada. Caso seja encontrada alguma irregularidade ou transações suspeitas, o caso é denunciado às autoridades competentes, como a Câmara Municipal e o Ministério Público. A ONG tem quase 13 anos de existência e surgiu no Paraná, terra da Operação Lava-Jato.

Depois de um escândalo que culminou no afastamento do então prefeito de Maringá, na prisão do secretário de Fazenda e no sumiço de R$ 115 milhões dos cofres públicos, associações de classe e cidadãos se uniram para criar em 2004 a primeira unidade do Observatório.

O trabalho é feito em parte por voluntários, que vão desde pessoas com algum nível de conhecimento das finanças públicas, como auditores da receita e contadores, até estudantes. Todos passam por um treinamento antes de começar, mas o trabalho também conta com mão de obra paga e especializada.

"Não tem como fazer um trabalho consistente e perene sem profissionalização", diz Roni. O custo mensal da sede de um município médio é de cerca de R$ 5 mil, que vêm de doações de associações e moradores da cidade.

Entre 2013 e 2016, o OSB estima ter evitado o desvio de R$ 1,5 bilhão. Foi uma das unidades da ONG, em Ponta Grossa (PR), que descobriu e impediu a compra do carro de limpeza por R$ 20 mil.

Além da fiscalização constante das despesas governamentais, outro desafio é manter todas as unidades do Observatório funcionando corretamente e livre de pressões. "Tem candidato derrotado que quer criar a sua própria sede para usar como arma política", diz Roni. Ela afirma que a falta de monitoramento abre espaço não só para casos de corrupção, mas também para a ineficiência.

"Acompanhando de perto, a gente percebe que há grandes prefeituras que não têm nem controle de estoque informatizado. Se uma banquinha de jornal tem, porque a prefeitura não pode ter? Sem controle, aquele estoque se perde, os produtos perdem o prazo de validade", diz. "Nas cidades pequenas, a gente chama o Portal da Transparência de Portal da Aparência, porque não tem nada ali”.

Em São Caetano do Sul (SP), a entidade conseguiu impedir uma licitação de R$ 12 milhões em propaganda da prefeitura antes das eleições municipais do ano passado. Nos cálculos de Mario Camilo Bohm, presidente da ONG na cidade, 10% dos 150 mil habitantes trabalhavam para a prefeitura no ano passado, entre concursados e terceirizados. "É um município sem nenhuma cultura de transparência. O prefeito quando é eleito aqui, independentemente do partido, vira dono da cidade", diz. O crescimento do número de despesas suspeitas descobertas tem crescido no último ano, à medida que surgem novas unidades do Observatório. "No ano passado houve um 'boom' de pedidos de abertura de sedes municipais”, diz Roni.

Tecnologia

Com poucos recursos e mão de obra, algumas dessas novas iniciativas apostam na tecnologia para fiscalizar nichos específicos do poder público, como a Câmara dos Deputados. Criada no ano passado por um grupo de oito amigos e conhecidos, a Serenata de Amor, nome de uma marca famosa de chocolate, é um desses exemplos.

A inspiração para o nome veio de um escândalo de corrupção sueco dos anos 90, em que a então vice-ministra Mona Sahlin usou o cartão de crédito corporativo do governo para comprar, entre outras coisas, chocolates. "Escolhemos o nome para mostrar que a gente quer chegar nesse nível de detalhamento das contas públicas", diz Pedro Vilanova, um dos criadores do Serenata de Amor.

O grupo conseguiu arrecadar R$ 80 mil para se dedicar durante três meses à criação do "robô" Rosie - nome inspirado no desenho animado futurista "Os Jetsons", da década de 60 -, que levanta gastos suspeitos de deputados por meio do cruzamento de dados. Todos os 513 integrantes da Câmara têm direito a uma cota para exercício parlamentar, que dá direito a até R$ 44 mil mensais em reembolso por alimentação, passagens de avião e combustível, por exemplo.

Por enquanto, Rosie consegue detectar apenas despesas anormais com alimentação: refeições muito mais caras do que a média, em cidades diferentes em um curto espaço de tempo, consumo de bebidas alcoólicas ou despesas para mais de uma pessoa. A ideia agora é deixar Rosie ainda mais inteligente, cruzando dados de outros tipos de gastos. "É um trabalho que nunca termina, de eterno aprimoramento", diz Vilanova.

Para isso, o grupo busca um novo financiamento coletivo (apoia.se/serenata), com diferentes metas: R$ 4.500 para manter um funcionamento mínimo com uma pessoa, R$ 15 mil para montar uma equipe e R$ 45 mil para que os oito membros se dediquem à operação. O procedimento da Serenata é semelhante ao do Observatório Social do Brasil: quando é detectada uma possível irregularidade, um dos integrantes analisa pessoalmente o caso.

"A gente coloca o olho humano nessa etapa final", afirma Vilanova. Confirmada a irregularidade, o caso é encaminhado à Câmara pelo próprio site da Casa. "O serviço deles é bem completo, estamos tendo uma boa resposta."

Nas primeiras semanas de janeiro, a Serenata do Amor conseguiu que 629 pedidos de reembolso fossem cancelados, devolvendo ou mantendo nos cofres públicos um total de R$ 378 mil. Foi a Serenata do Amor que detectou os 13 almoços no mesmo dia feitos pelo deputado federal Celso Maldaner (PMDB-SC), em 2011. Ele acabou devolvendo os R$ 727 que recebeu pelas refeições na ocasião. Por sua vez, o nome do deputado que consumiu refeições em seis cidades em três Estados diferentes no mesmo dia não foi revelado, já que o caso ainda não chegou ao fim.

Há ainda iniciativas que se limitam a colocar os dados de maneira mais simples à população, deixando para o público decidir o que fará com a informação. É o caso do Meu Deputado, aplicativo desenvolvido por seis estudantes de ciência da computação do Rio Grande do Sul, com idade entre 23 e 28 anos. A cada quatro dias, o programa faz uma leitura das das notas fiscais apresentadas pelos deputados para pedir reembolsos.

"O Meu Deputado é só um primeiro passo. Queremos criar também o Meu Senador, o Meu Político", diz Claudio da Silva Dias Junior, um dos desenvolvedores do aplicativo. "Precisamos aproveitar que as pessoas estão cada vez mais interessadas em ter informação a respeito dos gastos públicos."


Publicada em : 07/02/2017

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