A Previdência é mesmo deficitária?
O jornal alemão Deutsche Welle, em reportagem de Jean-Philip Struck, publicou matéria sobre o déficit da previdência no Brasil. O artigo destacou que a associação de auditores fiscais aponta superávit, contrariando argumento usado pelo governo para reforma previdenciária
O governo do presidente Michel Temer defende uma ampla reforma para mudar as regras da Previdência. A justificativa é que o suposto rombo precisa ser fechado, sob o risco de que o sistema todo entre em colapso. Nos últimos meses, no entanto, vídeos e textos publicados sobretudo em sites de esquerda contestaram essa versão. Para esses críticos, o alardeado rombo da Previdência não passa de uma farsa contábil que visa promover a retirada de direitos dos trabalhadores.
Uma das principais organizações que promovem a ideia é a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip). Em dezembro, ela lançou um vídeo didático em que afirma demonstrar como o governo manipula os números. A tese também foi levantada por alguns economistas que compareceram em audiências no Congresso.
No ano passado, segundo dados do Ministério da Fazenda, a Previdência registrou um déficit de 149,73 bilhões de reais, equivalente a 2,4% do PIB.
Os argumentos que refutam a ideia de déficit não chegam a afirmar que a Previdência em si não é deficitária, mas apontam que ela não deve ser olhada de forma isolada, somente com base no que é arrecadado e gasto. Cinco pontos são usados para demonstrar a ausência de déficit:
Seguridade social
Os críticos defendem que o orçamento da Previdência tem que ser analisado levando em conta toda a Seguridade Social, o sistema que engloba os recursos da área da saúde, de assistência social, além das aposentadorias e pensões. Segundo a Constituição, a Previdência é um dos braços da Seguridade. Isoladamente, os recursos da Previdência são levantados por meio da contribuição de trabalhadores e empresas.
Quando considerada toda a Seguridade, as despesas são muito maiores que as da Previdência, já que englobam gastos com o SUS e o Bolsa Família, por exemplo. Só que a fonte dos recursos também é mais ampla, incluindo CSLL (Contribuição Sobre Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e PIS/Pasep. O buraco do regime geral da Previdência poderia, portanto, ser tapado com os recursos de outras contribuições da Seguridade, argumenta a Anfip.
No entanto, para Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, ouvido pelo jornal alemão, a premissa de que outros recursos da Seguridade podem ser alocados para cobrir a Previdência apenas muda o problema de lugar. "É tapar um buraco abrindo outro", afirmou.
O problema dessa interpretação também é que o governo divulgou que a totalidade da Seguridade Social já é deficitária. Em 2016, as receitas somaram 613,2 bilhões de reais, mas os gastos totalizaram 871,8 bilhões de reais, resultando num rombo de 258,7 bilhões de reais.
Cálculo e ausência de servidores
Para contornar o problema do déficit da Seguridade e ao mesmo tempo demonstrar que ao ser incluída ali a Previdência tem superávit, a Anfip exclui os gastos com aposentadorias do Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), que engloba servidores públicos civis e militares.
Segundo Vilson Romero, presidente da Anfip, é correto excluir os servidores do cálculo geral já que o regime deles é diferente e a Constituição não prevê que a aposentadoria deles seja custeada pelas várias fontes de renda da Seguridade. "Não concordamos com a inserção tanto dos civis quanto dos militares. O que o governo faz é uma pedalada", afirma.
No ano passado, o RPPS dos servidores públicos registrou um déficit de 77,1 bilhões de reais, um aumento de 6,4% em relação a 2015. Apenas o regime dos militares contabilizou um rombo de 34 bilhões de reais.
O economista Mansueto Almeida, secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, crítica a fórmula da Anfip e afirma que a conta terá que ser paga de alguma forma. "Retira-se da conta o déficit dos servidores públicos sem que se diga quem pagará por isso", disse.
Renúncias previdenciárias
A Anfip também afirma que parte do déficit isolado da Previdência é causada por uma série de renúncias fiscais -- benefícios concedidos a empresas e fundações que permitem que elas deixem de pagar contribuições previdenciárias.
O total de renúncias fez com que o governo deixasse de arrecadar 43,4 bilhões de reais em 2016. Metade foi concedida ao Simples Nacional, regime tributário diferenciado, beneficiando micro e pequenas empresas.
Desvinculação de Receitas da União
Os críticos da tese do déficit também apontam como vilã a Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo criado em 1994 que permite ao governo federal mais mobilidade nos gastos com os impostos arrecadados.
Hoje, até 30% dos recursos da Seguridade Social podem ser repassados ao orçamento fiscal, permitindo ao governo alcançar a meta do superávit primário. Segundo os críticos, se o governo não tomasse parte do dinheiro da Seguridade para pagar juros da dívida, haveria mais recursos para transferir para a Previdência.
Os recursos do INSS em si não são afetados pela DRU, apenas as outras contribuições da Seguridade, aquelas que poderiam ser usadas para ajudar a tapar o buraco. Em 2016, a DRU realocou 94 bilhões de reais da Seguridade.
O problema, novamente, é que esse dinheiro só cobriria uma parte dos 258,7 bilhões de reais do prejuízo da Seguridade. Sem a DRU, o déficit seguiria sendo de pelo menos 164 bilhões de reais.
Dívidas
Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o total devido à Previdência pelos 500 maiores devedores -- entre eles empresas, fundações e governos estaduais municipais -- alcançou 426 bilhões de reais em 2016. Críticos da reforma da Previdência apontam que esse total seria suficiente para tapar três vezes o rombo registrado no ano passado.
O problema é que o pagamento desse valor também só poderia amenizar o rombo da Previdência por pouco mais de dois anos. E mesmo esse cálculo é otimista. Muitas das empresas que devem o montante já faliram há mais de uma década e estão mergulhadas em disputas. A Varig, por exemplo, deve 3,7 bilhões de reais em contribuições.
A própria PGFN não acredita que será possível recuperar uma fatia significativa desse total. No ano passado, só 4 bilhões de reais em dívidas foram recuperados, menos de 1% do total devido.
Conclusão
Mesmo admitindo que a Previdência deve ser vista num quadro maior - no qual há mais recursos, os servidores são excluídos e não há isenções ou DRU -, a conta ainda fecharia no vermelho. Aplicando-se essa fórmula, a Seguridade ainda registraria um prejuízo de pelo menos 44 bilhões de reais em 2016, se levados em conta os números divulgados pelo governo.
Num cenário otimista, se as dívidas previdenciárias pudessem ser todas cobradas, elas poderiam ajudar a cobrir esse rombo pelos próximos anos, mas o déficit teria que permanecer estável. De 2015 para 2016, o rombo da Seguridade aumentou 55%.
No vídeo em que promoveu a ideia de inexistência de déficit, a Anfip aplicou seu cálculo a dados de 2015, e assim demonstrou um superávit de 11 bilhões de reais na Seguridade. Outros economistas que defendem a tese da inexistência do déficit preferem usar uma série histórica que inclui anos em que setores da Previdência registraram isoladamente resultados positivos, o que ajuda a melhorar a média.
Segundo Castello Branco, mesmo que fosse possível mostrar um superávit na Seguridade em 2015 e 2016, isso não eliminaria o fato de que hoje a Previdência em si é deficitária, e a tendência é que os números piorem se o quadro permanecer o mesmo.
"É possível fazer todo o tipo de cálculo para forçar uma conclusão. Mas isso não leva em conta que a população está envelhecendo e que vamos ter menos gente para contribuir. O próprio governo do PT já discutia uma reforma", afirma.
"Falar em superávit é desinformação. Agora, isso não quer dizer que não é válido discutir alguns aspectos da reforma da Previdência proposta pelo governo e questionar se seus aspectos vão ser positivos", considera.
Romero, da Anfip, aponta que ainda é preciso confirmar independentemente a validade dos números de 2016 divulgados pelo governo. Ele admite, no entanto, que é possível que os números do ano passado não fechem no azul como no cálculo de 2015, mas que isso não invalida a tese de que as contas precisam de mais transparência.
"O governo tenta empurrar a reforma sem explicar os números. É claro que é preciso fazer ajustes devido à demografia, mas também é preciso entender outros fatores que pressionam a Seguridade. Nem tudo é pagamento de aposentadoria. As renúncias e a DRU têm que acabar, por exemplo", conclui.
Para Castello Branco, o ideal é não fazer da reforma da previdência uma discussão de futebol, em que um lado está certo e o outro errado. “O reforma é necessária, mas precisa ser discutida tecnicamente, ponto a ponto, e não como uma guerra em cada um tenta defender o seu lado, julgando-o absolutamente correto”, explica.
O economista defende que devem ser analisados de forma objetiva alguns pontos da reforma proposta por Temer, como a regra de transição, a inclusão de trabalhadores rurais e o fato do texto ter excluído das mudanças os militares e servidores dos estados e municípios.
Entenda o déficit da Previdência
Publicada em : 31/03/2017